Não conheço mulher que defenda sem reservas o sistema de quotas. Se calhar, estou como Pessoa: todas as minhas conhecidas têm sido campeãs em tudo. A paridade imposta soa-lhes a confissão de menoridade e elas venceram por absoluto mérito próprio. Naturalmente. Por isso, vou postular que vós, mulheres que ora me ledes (creio firmemente que está na altura de salvarmos a segunda pessoa do plural do gueto da oratória clerical, há sério risco de extinção e era uma pena perderem-se tão melodiosas formas verbais, para além de soberbos vocativos), sois casos de sucesso individual, sem necessidade de muletas legais.
Agora, pensai na carreira política partidária, como normalmente é construída a partir das bases. Se quiserdes, podeis chamar-lhe antes participação cívica - o cinismo distrai e esta é obviamente uma tese séria. A dita carreira constrói-se com assíduas reuniões nas concelhias (ou nas juventudes, para quem torcer o pepino de pequenino), um voluntariado de alta visibilidade, muitos jantares nas distritais, coligações de interesses, jogos de bastidores e inúmeras palmadas nas costas, com ou sem punhal. Na generalidade dos casos, em horário pós-laboral ou aos fins-de-semana. Só que o pós-laboral feminino está coarctado à partida por um sistema desigual que impõe à mulher o grosso da actividade doméstica e da educação dos filhos.
Estais todos a ver a Sónia da Contabilidade a sair do escritório, passar por casa para comer qualquer coisa, dar um beijo repimpado aos dois infantes e ir para a concelhia discutir a lista para a junta da freguesia até à meia-noite, certo? Enquanto o marido saiu às cinco da repartição, passou pelo supermercado, foi buscar as crianças ao colégio e fez o jantar, ficando depois a ajudar a prole nas lições, a arrumar a cozinha e a passar a ferro, realizado por saber que a sua Sónia está a trepar no partido e virá tarde, mas com uma sinecura bem apessoada? Pois.
Por isso vos digo: num parlamento composto maioritariamente por décimas terceiras figuras, eleitas em listas cozinhadas como recompensa da militância partidária e dos seus jogos de interesses, as quotas são uma forma de reparar a injustiça social da desigualdade de armas. Enquanto a Sónia for apenas igual de direito em vez de igual de facto e de direito, as quotas são um mal menor. Na melhor das hipóteses, na ausência de hordas femininas de fiéis caciques ou de devotas da palmada nas costas, os partidos terão de escolher mulheres que se distingam pela competência. Na pior, apenas acresce uma grosa de tontas ao contingente masculino de amibas. Mas, ao menos, serão tontas não discriminadas pelo facto de terem carregado o peso da casa e dos filhos enquanto os maridos obravam postas de pescada na estrutura partidária mais próxima.